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sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

Com Certeza



Artur de Carvalho
Caricatura: MAXX

Artur de Carvalho


Você já ouviu falar do Princípio da Incerteza?

Bem, vou tentar explicar aqui, em poucas linhas, uma coisa que cientistas ganhadores do prêmio Nobel de Física passaram a vida inteira para descobrir. A tarefa não é fácil, eu sei, nem digna deste pobre cronista, mas não custa nada tentar.

É o seguinte. O Princípio da Incerteza foi a conclusão a que chegaram alguns estudiosos da física quântica quando eles estavam lá, analisando o comportamento dos elétrons (lembra? elétrons, átomos, núcleos). Eles descobriram que não conseguiriam nunca saber onde é que uma determinada partícula estava num dado momento específico porque, para sabê-lo, era necessário tocar a partícula, tirando-a assim do seu lugar de origem.

Explicando melhor. Tente, por exemplo, medir a distância entre o focinho e a ponta do rabo de um gato. Bem, se você não matar o gato, provavelmente — além de não conseguir medir porcaria nenhuma — vai também precisar de muitos curativos. Porque o gato não vai ficar ali, quietinho, esperando você medir.

E é mais ou menos o que acontece com as partículas que formam nossos corpos. Ninguém sabe exatamente onde elas estão porque ninguém consegue chegar nem perto delas e elas escapam.


Ilustração: Artur de Carvalho


E, se ninguém consegue saber com precisão onde estão nossos elétrons, então também é impossível saber "exatamente" onde nós estamos. Entendeu?

Desde que essas observações vieram à luz, daquelas três perguntas que há milênios atormentam a vida dos filósofos — de onde viemos? onde estamos? para onde vamos? — a que parecia ter a resposta mais fácil tornou-se um verdadeiro pesadelo: nós sequer sabemos onde estamos!!!

Essa confusão toda foi chamada de Princípio da Incerteza posto que, se não sabemos sequer onde estamos, como poderemos então ter certeza de mais alguma coisa?

Bem, é claro que eu simplifiquei bastante a tal teoria. Se me aparecer algum físico quântico por aí, com algumas correções, eu até agradeço, mas acho que não adiantaria muito a gente entrar em detalhes aqui, já que até mesmo sendo bastante supérfluo como fui, a coisa já me parece bastante confusa.

Ainda mais que não era exatamente sobre isso que eu queria falar. Eu queria era falar sobre essa mania que as pessoas têm de iniciar todas suas repostas com um "com certeza". Especialmente as pessoas mais ou menos famosas. Pode reparar. O repórter chega para o fulano e pergunta:

— E o disco? Está vendendo muito?

— Com certeza. Em todo lugar que a gente vai é recebido com carinho e...— e por aí vai.

O repórter chega para outro:

— As acusações eram verdadeiras?

— Com certeza. Embora as investigações ainda estejam em fase inicial, pressuponho que...

Mas não é só com gente famosa não. Pergunte aí, para seu vizinho.

— E aí? Muita farra no fim de semana?

— Com certeza... Fomos pro rancho e... — não sei que mais.

Mas não é possível que esse pessoal tenha tanta certeza assim, de tantas coisas, ao mesmo tempo. Eu não tenho certeza nem de onde vou dormir amanhã, e você chega pra esses caras e pergunta como é que eles pretendem passar as férias e eles vêm com um " — Com certeza numa praia, ou numa montanha..."

Oras, se vai ser numa praia OU numa montanha, então por que é que começa falando "com certeza"? Se nem os mais famosos cientistas — que passam vinte quatro horas por dia em cima de microscópios eletrônicos estudando as partículas atômicas — têm absoluta certeza de nada nesse mundo, esse povinho aí vai querer ter certeza do quê, deus do céu?

Sei lá. As certezas, assim como as unanimidades, geralmente são muito burras.

--------------

O cartunista e escritor Custódio fala sobre o autor:

"Artur de Carvalho poderia ser muita coisa na vida. Poderia ser arquiteto ou junkie, dono de padaria ou desenhista, pai careta ou um bicho grilo amalucado. Poderia ainda ser galã easygoing ou um marido correto, profissional talentoso e sujeito de bom caráter. Mas isso seria pouco. Artur resolveu ser então...

Tudo isso. TUDO.

Na luta para incorporar todos esses personagens em sua Távola Redonda, Artur, rei de múltiplas faces, acabou adquirindo bronquite crônica, cirrose crônica, e uma crônica humanidade que lhe dá uma força tão grande quanto desapercebida. Claro, Artur virou cronista. Da felicidade dele em descobrir sua verdadeira vocação, vem a nossa, de descobrir seus textos leves, suas observações reluzentes, seu humor doído de tão humano.

E assim, sem podermos ter as múltiplas faces que o autor colecionou pela vida, somos brindados pela doce viagem de sermos sócios delas, e entrarmos em sua casa, sua família, sua Votuporanga, que poderia ser Porto Alegre, São Paulo ou Nova Iorque. O Incrível Homem de Quatro Olhos é um livro arrebatador. Não arrebatador como aqueles torpedos certeiros que partem de uma esquadra bem armada. Mas sim arrebatador como uma brisa suave* que venha carregada de lembranças felizes.

O meu amigo Artur é um escritor do Carvalho."

*Brisa Suave, em tupi, é Votuporanga".


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Artur de Carvalho colabora com o "Diário de Votuporanga", interior de São Paulo, desde 1997. É autor dos livros "O Incrível Homem de Quatro Olhos", edição do autor — Votuporanga, 2000, e "Pah!", Vialettera Editora, 2003, que acaba de chegar às livrarias.

Além de excelente escritor, Artur é um cartunista dos melhores, com um traço bem diferente, que você poderá ver em seu site, e lá comprar os livros.

Site: www.arturdecarvalho.com.br

Tá com essa cara por quê?



Artur de Carvalho
Caricatura: MAXX



Artur de Carvalho



Cientistas ingleses afirmaram que já é possível fazer transplantes de rosto.

É isso mesmo. Eu li a notícia numa dessas revistas de ciências, no consultório do meu médico A ideia dos cientistas é retirar a pele do semblante de um doador e reimplantá-la em outra pessoa. Afinal, eles dizem, a pele é apenas mais um órgão humano e, se já é possível fazer transplantes seguros até do coração, que é muito mais complicado, por que não da pele?

Eu fiquei abismado. Primeiro que eu nem sabia que a pele era considerada um órgão.Segundo que essa operação oferece possibilidades que beiram a ficção científica.

É, porque, embora os tais cientistas ingleses afirmem que a intenção deles é apenas recuperar pessoas desfiguradas por queimaduras, eu duvido muito que a coisa vá ficar por aí.

Você agora pode mudar de cara, entende? Quem sabe se, daqui alguns anos, a gente não vai poder escolher novas feições numa clínica ou até mesmo num supermercado ou num shopping?

A maioria das pessoas com quem comentei a notícia ficou entusiasmada. Afinal, quase ninguém é muito feliz com a cara que tem. Um reclama do nariz mais protuberante. A outra, de suas orelhas de abano. Um terceiro que tem muitas espinhas. Todo mundo quer mudar de cara.

Apenas um dos meus amigos não gostou muito da ideia. E com uma certa dose de razão.

— Eu é que não troco a minha cara. Apesar de feia, com essa pelo menos eu já estou acostumado.E, mesmo se fosse para trocar, eu ia querer a cara de quem? É uma pergunta interessante. A cara de quem você gostaria de ter? Do Silvester Stallone? Não. Acho que eu prefiro alguma coisa um pouco mais intelectual, Talvez do Woody Alien. Não, também não. Eu nunca fiquei bem de óculos. Do Tom Cruise? Não. As fãs não iam me deixar em paz. Do BilI Gates? Bem, só se, junto com a cara, viesse também seu saldo bancário. A verdade é que é muito difícil escolher uma nova cara.

— E tem outra— continuou meu amigo—, já imaginou ter a cara de outro homem ali, o tempo todo, encostadinha em você? Cai fora, sô...

Mas é claro que, apesar das dificuldades, muitas pessoas iam acabar aderindo aos transplantes de rosto. Umas por vaidade. Outras só porque é moda. E muitas por razões que a gente menos imagina.

— Mãe? Mas que cara é essa???

— Eu troquei de cara, filho.

— Mas... é a senhora mesmo?

— É claro que sou eu, meu filho.

— Mas essa cara, mãe, essa é a cara da... da...

— Joana Prado, filho, eu sei.

— Mas logo da Feiticeira, mãe! Não tinha outra cara pra você colocar?

— Pois é, filho. É que eu quis fazer uma surpresa pro seu pai. Pro meu pai?!

— É. Ele sempre vivia falando dessa Feiticeira pra cá, Feiticeira pra lá. E eu quis fazer uma surpresa pra ele e coloquei a cara dela.

— Puxa vida, mãe... Mas... e o pai gostou?

— Gostou nada. Quem é que disse que era da cara da Feiticeira que seu pai gostava?

— Gostou nada. Quem é que disse que era da cara da Feiticeira que seu pai gostava?


Artur de Carvalho
colabora com o "Diário de Votuporanga", interior de São Paulo, desde 1997. É autor dos livros "O Incrível Homem de Quatro Olhos", edição do autor — Votuporanga, 2000, e "Pah!", Vialettera Editora, 2003. Além de excelente escritor, Artur é um cartunista dos melhores, com um traço bem diferente, que você poderá ver em seu site,e lá comprar os livros.


O texto acima nos foi gentilmente enviado pelo escritor.

Sítio: www.arturdecarvalho.com.br

Tá com essa cara por quê?



Artur de Carvalho
Caricatura: MAXX


Artur de Carvalho



Cientistas ingleses afirmaram que já é possível fazer transplantes de rosto.

É isso mesmo. Eu li a notícia numa dessas revistas de ciências, no consultório do meu médico A ideia dos cientistas é retirar a pele do semblante de um doador e reimplantá-la em outra pessoa. Afinal, eles dizem, a pele é apenas mais um órgão humano e, se já é possível fazer transplantes seguros até do coração, que é muito mais complicado, por que não da pele?

Eu fiquei abismado. Primeiro que eu nem sabia que a pele era considerada um órgão.Segundo que essa operação oferece possibilidades que beiram a ficção científica.

É, porque, embora os tais cientistas ingleses afirmem que a intenção deles é apenas recuperar pessoas desfiguradas por queimaduras, eu duvido muito que a coisa vá ficar por aí.

Você agora pode mudar de cara, entende? Quem sabe se, daqui alguns anos, a gente não vai poder escolher novas feições numa clínica ou até mesmo num supermercado ou num shopping?

A maioria das pessoas com quem comentei a notícia ficou entusiasmada. Afinal, quase ninguém é muito feliz com a cara que tem. Um reclama do nariz mais protuberante. A outra, de suas orelhas de abano. Um terceiro que tem muitas espinhas. Todo mundo quer mudar de cara.

Apenas um dos meus amigos não gostou muito da ideia. E com uma certa dose de razão.

— Eu é que não troco a minha cara. Apesar de feia, com essa pelo menos eu já estou acostumado.E, mesmo se fosse para trocar, eu ia querer a cara de quem? É uma pergunta interessante. A cara de quem você gostaria de ter? Do Silvester Stallone? Não. Acho que eu prefiro alguma coisa um pouco mais intelectual, Talvez do Woody Alien. Não, também não. Eu nunca fiquei bem de óculos. Do Tom Cruise? Não. As fãs não iam me deixar em paz. Do BilI Gates? Bem, só se, junto com a cara, viesse também seu saldo bancário. A verdade é que é muito difícil escolher uma nova cara.

— E tem outra— continuou meu amigo—, já imaginou ter a cara de outro homem ali, o tempo todo, encostadinha em você? Cai fora, sô...

Mas é claro que, apesar das dificuldades, muitas pessoas iam acabar aderindo aos transplantes de rosto. Umas por vaidade. Outras só porque é moda. E muitas por razões que a gente menos imagina.

— Mãe? Mas que cara é essa???

— Eu troquei de cara, filho.

— Mas... é a senhora mesmo?

— É claro que sou eu, meu filho.

— Mas essa cara, mãe, essa é a cara da... da...

— Joana Prado, filho, eu sei.

— Mas logo da Feiticeira, mãe! Não tinha outra cara pra você colocar?

— Pois é, filho. É que eu quis fazer uma surpresa pro seu pai. Pro meu pai?!

— É. Ele sempre vivia falando dessa Feiticeira pra cá, Feiticeira pra lá. E eu quis fazer uma surpresa pra ele e coloquei a cara dela.

— Puxa vida, mãe... Mas... e o pai gostou?

— Gostou nada. Quem é que disse que era da cara da Feiticeira que seu pai gostava?

— Gostou nada. Quem é que disse que era da cara da Feiticeira que seu pai gostava?


Artur de Carvalho
colabora com o "Diário de Votuporanga", interior de São Paulo, desde 1997. É autor dos livros "O Incrível Homem de Quatro Olhos", edição do autor — Votuporanga, 2000, e "Pah!", Vialettera Editora, 2003. Além de excelente escritor, Artur é um cartunista dos melhores, com um traço bem diferente, que você poderá ver em seu site, e lá comprar os livros.


O texto acima nos foi gentilmente enviado pelo escritor.

Sítio: www.arturdecarvalho.com.br

sábado, 11 de fevereiro de 2012

atualização em 01/03/2012.

RUBEM FONSECA, com a maestria de sempre, em "O ensino da Gramática"

ARTUR DE CARVALHO e sua irreverência em "Tá com essa cara por quê?".

JÁDSON BARROS NEVES, premiadíssimo novo escritor, estréia no RELEITURAS com o belo conto "O cachorro e os cães".

CLOTILDE ZINGALI, retorna às nossas páginas em
"Célia era um mamífero".

ARQUIVOS: Rato de Sebo (CUSTÓDIO), Quadrinho Quadrado (CACO XAVIER) e a Cinemateca do Releituras.



O ensino da gramática



Rubem Fonseca

Rubem Fonseca



Você está triste?

Não sei. Talvez.

Tristeza dá câncer, sabia?

Pensei que dava verruga no nariz.

Estou falando sério.

Ultimamente você vive falando sério.

Quando eu brincava você reclamava.

Nem tanto ao mar nem tanto à terra.

Você colocou vírgula depois de mar.

Estou falando, não estou escrevendo.

Mas na sua fala tinha uma vírgula depois de mar?

Não. Você está fazendo uma análise sintática e morfológica da frase?

Na frase há o uso da figura de sintaxe chamada elipse.

Chega. É por coisas assim que eu não quero mais viver com você.

Porque eu sei gramática e você não?

Entre outras coisas.

Não gosta mais de foder comigo?

Usarei uma elipse aqui. Ou melhor, uma zeugma.

Zeugma é um substantivo masculino.

Um zeugma, então.

Significando?

Que é fácil subentender.

Subentender por que você não gosta mais de foder comigo?

Precisamente. Pensa.

Estou pensando e não consigo.

Pensa em nós dois na cama.

Você sempre se manifesta pomposamente na hora do orgasmo.

Pomposamente? Explica.

Exibição de magnificência sensual. Mímica.

Mímica?

Mímica. Muito bem-feita.

Vou fazer as malas. Diga: já vai tarde.

Já vai tarde.

E esses olhos úmidos de lágrimas?

Mímica.

Acho que vou ficar mais um pouco.

Um pouco?

Uns dias.

Dias?

Pensando bem, uns meses. Mas você me ensina gramática durante esse tempo.

Então deixa de ficar triste.

Tenho uma razão. Já estou com câncer.

Jura?

Juro. Pulmão. O cigarro.

Meu amor, vou cuidar de você.

Mas antes me ensina gramática


Texto extraído de "Axilas e outras histórias indecorosas", de Rubem Fonseca, Editora Nova Fronteira - 2011

Conheça a vida e a obra de
Rubem Fonseca na página "Biografias".

Diário de um fescenino



Rubem Fonseca

Rubem Fonseca


Rubem Fonseca
foi agraciado com o Prêmio Luis de Camões, concedido pelos governos do Brasil e de Portugal, pelo conjunto de sua obra, conforme divulgado em 13 de maio de 2003. Considerado o “Nobel” da língua portuguesa, o prêmio já foi concedido aos brasileiros João Cabral de Melo Neto, Rachel de Queiroz, Jorge Amado, Antônio Candido e Autran Dourado. Com nossos cumprimentos pelo merecido galardão, apresentamos o primeiro dia de seu “Diário de um fescenino”:


1º. de janeiro

Decidi, neste primeiro dia do ano, escrever um diário. Não sei que razões me levaram a isso. Sempre me interessei pelos diários dos outros, mas nunca pensei em escrever um. Talvez depois de considerá-lo terminado quando?, que dia? — eu o rasgue, como fiz com um romance epistolar, ou o deixe na gaveta, para, depois de morto, os outros — nem sei quem serão, pois não tenho herdeiros — resolverem o que fazer com ele. Ou, então, pode ser que eu o publique.

"O bom diarista", disse Virginia Woolf, "é aquele que escreve para si apenas ou para uma posteridade tão distante que pode sem risco ouvir qualquer segredo e corretamente avaliar cada motivo. Para esse público não há necessidade de afetação ou restrição." Não me imporei restrições, porém sei que estarei sendo influenciado de várias maneiras, ao considerar a hipótese de ser lido pelos meus contemporâneos. Os autores de diários, qualquer que seja sua natureza íntima ou anedótica, sempre escrevem para serem lidos, mesmo quando fingem que ele é secreto. O Samuel Pepys, que codificou o seu diário, deixou pistas para ser decifrado.

Nesse gênero literário, o autor fala sozinho numa , espécie de solilóquio. Aqui, porém, não apenas a minha voz, a do protagonista, será ouvida, mas também as dos outros, deuteragonistas e tritagonistas. (Podem me chamar de pedante, mas que nomes posso atribuir a esses outros, a partir do momento em que me denominei protagonista?) Confesso que, ao realizar essa tarefa, pretendo me exercitar na técnica de escrever em forma dialogada. Há escritores, talvez eu seja um deles, que têm um certo preconceito contra o uso freqüente de falas para descrever interações entre dois ou mais personagens. O teatro não pode prescindir do diálogo e o cinema pode contar alguma coisa sem usar diálogos graças ao close e outros truques de câmera, no entanto o que o cinema pode nos dizer com imagens nunca tem a mesma riqueza de significados da narrativa literária. Acho que fiz todos os meus livros de ficção sem diálogos por não os ter usado no primeiro que escrevi, que fez aquele sucesso todo. Tentei repetir o mesmo formato. Mas aqui pretendo contar o que acontece usando diálogos. Tentarei reproduzir fielmente as expressões verbais de meus interlocutores. Ao fim do dia, após digitar os diálogos junto com uma descrição sucinta do cenário e das circunstâncias em que eles ocorreram, arquivarei tudo na memória do meu computador. Talvez escapem gestos ou falas importantes, elipses estas que resultarão de preguiça e algum desleixo; e, por outro lado, é provável que eu inclua ações e alocuções inúteis.

Os verbetes referentes a diários, journals e similares enchem várias páginas de qualquer enciclopédia. Os limites classificatórios desses textos são vagos. Numa firula taxinômica eu diria que não podem ser considerados diários, como muitos o fazem, o A Journal of the Plague Year, do Defoe, ou o Diário de um sedutor, do Soren Kierkegaard, que mais me parece um romance epistolar, assim como as Confissões, de Santo Agostinho, ou as Confissões de um comedor de ópio, do de Quincey, que devem ser rotulados como literatura confessional. Quatro exemplos apenas, em uma miríade possível.


Texto extraído do livro “Diário de um fescenino”, Cia. das Letras – Rio de Janeiro, 2003, pág. 11.

Conheça a vida e a obra de
Rubem Fonseca na página "Biografias".

Família é uma merda



Rubem Fonseca

Rubem Fonseca


Tenho uma saúde de ferro, mas andava sentindo umas dores de cabeça e fui à farmácia comprar aspirina. Foi assim que conheci Genoveva. Ela me perguntou para que eu queria aspirina.

“Para dor de cabeça”.

“Aspirina ataca o estômago”.

Se ela trabalhava numa farmácia devia saber o que estava dizendo.

“Então eu tomo o quê?”

“Tylenol.”

“Já tomei esse troço e não passou a dor” Ficamos batendo um papo, não tinha outros fregueses na farmácia. Ela morava na rua do Camerino, logo no início, perto da farmácia, que ficava na rua Larga, também conhecida como Marechal Floriano. Eu morava no Santo Cristo.

Gostei de Genoveva. Mesmo sem estar com dor de cabeça, voltei à farmácia no dia seguinte.

“Já acabou o Tylenol?”

“Vim só dizer oi para você”.

”Oi.Como é o seu nome?”.

“Valdo”.

“Parece nome de jogador de futebol. Você joga futebol?”

“Jogo. Pelada. Todo brasileiro joga futebol”.

“O meu é Geni”.

Depois desse dia, começamos a namorar O problema é que eu tinha que namorar escondido dos meus irmãos e da minha mãe. Eu gostava da Genoveva, mas ela era feia, nem muito gorda nem muito magra, nem tinha a pele ruim, mas era feia. Não sei como explicar a feiúra da Genoveva. Se fosse uma garota bonita era mais fácil.

Já namorávamos havia dois meses quando Genoveva me disse que a mãe dela queria me conhecer As confusões entre namorados sempre começam quando as famílias se metem no meio. A velha ia achar uma porção de defeitos em mim.

Mas não foi nada disso. A velha disse:

“Genoveva, seu namorado é muito bonito e educado”.

“Mamãe, eu disse a ele que me chamava Geni, a senhora sabe que eu não gosto desse nome.

“Se o moço vai casar com você tem que saber o seu nome verdadeiro.”

“Meu nome também não é Valdo. É Oduvaldo”.

“Acho Oduvaldo bonito’; disse a garota.

“Eu acho Genoveva mais ainda”.

Depois a mãe foi ver televisão no quarto onde as duas dormiam. A casa era pequena. Ficamos sozinhos no sofá da sala e eu não fiz nada. Não fiz nada porque Genoveva era virgem e eu não queria mandar o cabaço dela pro espaço, aquela coisa de a mãe falar em casamento me deixou arrepiado. Tirar cabaço é coisa feita no impulso, e a mulher sempre embucha. Aí o cara tem que casar Eu até casava com Genoveva, se não fosse a minha família. Todo mundo na minha casa era bonito. Como é que eu ia chegar e dizer, olha aqui pessoal, vou casar com esta moça feia? Ainda por cima, no momento nem estou trabalhando, quem me sustenta é o meu irmão que tem um restaurante no Santo Cristo. Ele é casado com uma dona que podia trabalhar no cinema.

Santo Cristo é um lugar perfeito, nasci e me criei lá, não tem boteco, loja, oficina, casa que eu não conheça, pelo menos por fora. Sei onde se pode comer uma boa gororoba, claro que o melhor lugar é o restaurante do meu irmão. Santo Cristo é um paraíso, eu podia passar a vida sem sair do bairro nem para ir à praia. Como é que fui comprar um remédio para dor de cabeça na rua Larga, se Santo Cristo tem suas farmácias? Foi o destino. O destino arma essas coisas pra cima da gente, colocou Genoveva no meu caminho.

“Você não gosta do lugar onde mora?”

“Por quê?”

“Nunca me leva para passear em Santo Cristo”.

“Não gosto daquele bairro. Prefiro a Tijuca. Já morei na rua dos Araújos”.

Era mentira. Eu detestava a Tijuca, mas não queria andar pelo Santo Cristo e ser visto com Genoveva. Quem morava na rua dos Araújos era uma meio-prima minha, a Glorinha, nós namoramos até que eles se mudaram para a Barra e eu inventei que isso complicou o namoro. Foi um pretexto, ela era bonita, gostava de mim, mas eu não gostava dela e dizem que filhos de primos podem nascer aleijados. Meus irmãos, apesar de detestarem a nossa tia, que era irmã da minha mãe por parte de pai, achavam que seria um casamento perfeito para mim. O pai dela, sócio de uma companhia de ônibus na Baixada, podia me arrumar um emprego, já que eu não queria ser garçom no restaurante do meu irmão. Eu não era daqueles caras que inventam que estão desempregados porque não encontram emprego, eu não encontrava mesmo, só não queria ser garçom.

‘‘Você não vai me apresentar sua família? Você nunca fala dela”.

‘‘Qualquer dia desses”.

“Eu te apresentei minha mãe. Não tenho pai. Você tem pai e mãe?”

“Sou igual a você, só tenho mãe. Mas ela não gosta de receber visita”.

“Também não tem irmãos?”

Você nunca conta uma mentira apenas. Vem sempre uma porrada delas, de enxurrada. Acho que eu dizia pelo menos uma mentira por dia para Genoveva. Eu gostava dela, mas não podia gostar dela, uma mulher bonita pode gostar de um homem feio, mas nenhum homem pode gostar de uma mulher feia, o mundo é assim. Se eu tivesse dinheiro para sair de casa, fugia com ela. E o trambolho da mãe, o que a gente ia fazer com aquilo? Quem sustentava a velha era a Genoveva, com a merreca que ganhava na farmácia, e olha que ela era a gerente.

Como diz o ditado, é mais fácil pegar um mentiroso do que um coxo. Coxo é uma espécie de perneta. Um dia fui apanhar Genoveva na farmácia na hora do almoço, íamos comer um sanduíche com caldo de cana num pé-sujo da rua do Acre e descíamos pela rua Larga quando ouvi uma voz:

“Oduvaldo, Oduvaldo”

Reconheci a voz, fingi que não ouvi. Continuei andando, mas Genoveva parou, olhou para trás.

“Tem uma moça te chamando”.

“Moça? Deixa pra lá, vamos embora”.

Mas a minha irmã já tinha chegado perto.

“Hoje é o aniversário de Clodoaldo. Não vá se esquecer Oito horas. Você é meio cabeça-tonta.”

Lá em casa todos os nomes de homem terminam em aldo. E o nome das mulheres em alva.

“Não vai me apresentar a sua amiga?”

“É a moça da farmácia”.

“Eu sou irmã dele. Marialva, muito prazer”.

“Muito prazer, Geni. Pensei que estava viajando”.

“Viajando? Quem me dera.”

“O que você está fazendo aqui na rua Larga?’ perguntei, irritado.

"Vim comprar o presente do Clodoaldo. Você está aborrecido com alguma coisa?”

“Temos que ir, tchau” eu disse, puxando Genoveva.

O caldo de cana naquele dia estava com gosto ruim. Genoveva não comeu o sanduíche. Disse estar sem fome e não falou mais nada. Quando voltávamos para a farmácia, me perguntou:

“Por que você não me apresentou como sua namorada? Moça da farmácia? Moça da farmácia?”

“Eu não quis, sabe como é, dizer assim, sem mais nem menos, esta é minha namorada, minha irmã ia dizer, meu irmão tinha uma namorada e não apresentava para a gente. Sabe como é, ia ficar esquisito”.

“Ela não estava viajando? Ou você está me engrupindo?”

“Que é isso, Genoveva? Está zangada?”

“Estou zangada, sim”.

“Eu um dia te apresento a eles”.

“Por que não me leva no aniversário do, do, como é o nome dele? Do seu irmão”.

“Clodoaldo. Assim, sem mais nem menos?”

“Como, sem mais nem menos? Tem que chegar uma hora para isso”.

“Não sei se a hora certa é numa festa de aniversário sem graça, com bolo e parabéns para você”.

Eu e o Clodoaldo fazíamos anos no mesmo mês, mas Genoveva não sabia disso, eu não podia dizer para ela que minha família ia dar uma festa para mim nos próximos dias, no meu aniversário. Eu não podia levar a garota na minha casa. Família é uma merda.

“Você pensa que eu sou boba, não pensa?”

“Que é isso, Genoveva?”

“Pára de dizer o que é isso. Isso é isso mesmo. Não me leva até a farmácia, quero pensar, você está me atrapalhando”.

Ela saiu correndo, correndo mesmo, como se estivesse disputando os cem metros rasos.

Cheguei às oito em ponto na festa do Clodoaldo, no restaurante dele, fechado para os fregueses naquela noite. Entre os presentes que ganhou, o único mixuruca foi o escudo do Vasco que dei a ele, mas Clodoaldo era um vascaíno fanático e gostou do escudinho, além disso sabia que eu estava na pindaíba. Fiquei espiando a minha família, todo mundo elegante, todos bonitos e bem de vida, a mulher do Clodoaldo era bonita, a do Reinaldo, que tem uma oficina mecânica, era bonita, até minha mãe, que era velha, era bonita, o único que era apenas bonito e não estava se dando bem na vida era eu, mas beleza não põe mesa, a menos que você seja mulher, como dizem.

Além da minha mãe e dos meus irmãos, estavam na festa os amigos deles. Eu não tenho amigos. Vá lá, os amigos deles são também um pouco meus amigos. Todo mundo bebeu, teve cantoria, gargalhadas, tudo numa boa, eu também bebi, mas não adiantou nada, a cerveja e o vinho tiveram o mesmo efeito que chá de agrião, só me deixaram enjoado.

“O Oduvaldo arranjou uma namorada” anunciou Marialva, lá para as tantas.

Todo mundo caiu na minha pele. Disseram um monte de besteiras, contaram piadinhas.

“Esse cara é um moita” disse Ronaldo.

“Quem é a moça?” perguntou minha mãe.

“Trabalha numa farmácia” disse Marialva.

“A Jaqueline? Aquela garota é um anjo”.

“Ela não trabalha na farmácia daqui, mãe. Acho que é numa das farmácias da rua Larga. Os dois estavam andando pela rua Larga. O nome dela é Geni”.

Ouvi mais um monte de piadinhas idiotas. Marialva não contou que Geni era feia. Para falar a verdade, Marialva era legal, estava noiva de um médico, ia casar com ele, o cara estava na festa, era meio prosa, sabe como são esses médicos, mas não era mau sujeito, muito gentil com todos nós, mas graças a Deus eu não precisava dos serviços dele, o cara era médico de hemorróidas. Além de bacana, o puto também era bonito. Porra, tinha gente feia pra caralho no Brasil, menos na minha família? Que merda.

No dia seguinte passei na farmácia. Genoveva estava emburrada.

“O senhor deseja algum produto?”

“Quero falar com você”.

“Não temos nada a conversar. Estou muito ocupada” disse, virando as costas e se escondendo no fundo da farmácia.

Eu estava numa sinuca de bico. Não podia apresentar Genoveva à minha família, eu ia morrer de vergonha, estava também com vergonha de mim mesmo, de ser um babaca, acho que era porque perdi o meu emprego e não conseguia arranjar outro, larguei o colégio no meio porque só gostava de jogar bilhar e bater bola, minha mãe e os meus irmãos deviam me encher de porrada, mas passavam a mão na minha cabeça.

Fiquei rondando a porta da farmácia até a hora de fechar. Quando Genoveva saiu, cheguei perto dela e disse:

“Quero te pedir perdão”.

Nenhuma mulher resiste quando um homem pede perdão. Ela olhou para mim, viu alguma coisa na minha cara e me perdoou.

“Está perdoado” disse, me dando um beijo no rosto.

Perdão eu pedi de verdade, mas o que disse em seguida era meio verdade meio mentira.

“Não te apresentei minha família porque eles são todos metidos a besta, só por isso”. Eles eram mesmo metidos a besta, até minha mãe, que se chamava Ednalva, era metida a besta, mas o motivo não era só esse, era como a minha família ia reagir quando visse a feiúra de Genoveva.

“E qual é o problema de eles serem convencidos? Qual é o problema?”

Consegui driblar o assunto e me separei dela numa boa, mas Genoveva parecia preocupada com alguma coisa.

No dia seguinte ao aniversário de Clodoaldo, me deu uma coisa e eu chamei Marialva para uma conversa particular. Disse a ela que estava apaixonado por Genoveva. Se você quer abrir o seu peito, abra para uma mulher Se ela for sua irmã, é claro. Mãe é mais complicado, mãe é boa numas coisas, noutras é melhor a irmã.

“Aquela moça da rua Larga?” perguntou Marialva.

“Aquela.”

“Muito apaixonado?”

“Loucamente apaixonado. Não posso viver sem ela. Sei que ela é feia, mas
não posso viver sem ela”.

‘‘Existe gente mais feia do que aquela moça
".

Depois, Marialva não disse mais nada. Mordeu o beiço de baixo, só isso.

Fiquei andando pela rua, passei na porta do bilhar, resolvi que não ia jogar sinuca nunca mais, nem pelada de futebol, sei que ia sofrer por isso, mas a minha vida já estava mesmo um lixo. Ainda por cima, na quinta-feira era o dia do meu aniversário; a minha família sempre fazia uma festa para mim e eu não ia levar a Genoveva. Se ela soubesse, eu estava frito, Genoveva se chateou só porque não a convidei para o aniversário do Clodoaldo. Eu estava no mato sem cachorro.

Fiquei dois dias sem ver Genoveva. No dia do meu aniversário, cheio de remorso, dei uma passada na farmácia. Pensei que ela ia me dar um esporro, mas me recebeu com um sorriso. Achei esquisito, mas a gente nunca sabe o que uma mulher está pensando.

“Passei aqui só para te dizer que te amo”.

“Mais alguma coisa?”

“Não, só isso. A gente se vê amanhã?”

“Está bom, a gente se vê amanhã” disse ela, sempre rindo. Parecia ter pirado completamente”.

O meu aniversário foi na casa da minha mãe. Eu morava na casa da minha mãe, acontece com os caçulas, ainda mais temporão e desempregado, como eu. Estava a turma toda lá, meus irmãos, as mulheres dos meus irmãos, o doutor da Marialva, aqueles bestalhões todos A festa mal havia começado quando minha mãe disse:

“Marialva, vai pegar o presente do Oduvaldo”.

Minha irmã desapareceu por algum tempo.

A campainha da porta tocou, e todos começaram a cantar, parabéns para você. Aquela musiquinha me dava nojo.

Então minha mãe abriu a porta e surgiu Marialva, puxando Genoveva pela mão.

“Genoveva...? eu disse, surpreso.

“Não tem tanta farmácia assim na rua Larga, foi fácil encontrar a moça” disse Marialva.

Tive vontade de chorar, acho que é porque estava desempregado, e sujeito desempregado fica fraco. Para falar a verdade, meus olhos ficaram úmidos quando abracei Genoveva. Depois abracei os meus parentes e todos cobriram Genoveva de beijos. Minha mãe trouxe um bolo da cozinha, cheio de velas acesas.

Estou casado com Genoveva. Minha família gosta muito dela, dizem que é meiga, prestativa e cuida bem de mim. Trabalho como garçom no restaurante do Clodoaldo. Não é tão ruim assim, ser garçom, e o meu irmão me ofereceu sociedade. Estou dando duro, sem hora para entrar nem sair.

Quem foi que disse que família é uma merda?


Texto extraído do livro Pequenas criaturas, Companhia das Letras - São Paulo, 2002, pág. 32.

Conheça a vida e a obra de Rubem Fonseca na página "
Biografias".

O Outro



Rubem Fonseca

Rubem Fonseca


Eu chegava todo dia no meu escritório às oito e trinta da manhã. O carro parava na porta do prédio e eu saltava, andava dez ou quinze passos, e entrava.

Como todo executivo, eu passava as manhãs dando telefone­mas, lendo memorandos, ditando cartas à minha secretária e me exasperando com problemas. Quando chegava a hora do almoço, eu havia trabalhado duramente. Mas sempre tinha a impressão de que não havia feito nada de útil.

Almoçava em uma hora, às vezes uma hora e meia, num dos restaurantes das proximidades, e voltava para o escritório. Havia dias em que eu falava mais de cinqüenta vezes ao telefone. As cartas eram tantas que a minha secretária, ou um dos assistentes, assinava por mim. E, sempre, no fim do dia, eu tinha a impressão de que não havia feito tudo o que precisava ser feito. Corria contra o tempo. Quando havia um feriado, no meio da semana, eu me irritava, pois era menos tempo que eu tinha. Levava diariamente trabalho para casa, em casa podia produzir melhor, o telefone não me chamava tanto.

Um dia comecei a sentir uma forte taquicardia. Aliás, nesse mesmo dia, ao chegar pela manhã ao escritório surgiu ao meu lado, na calçada, um sujeito que me acompanhou até a porta dizendo "doutor, doutor, será que o senhor podia me ajudar?". Dei uns trocados a ele e entrei. Pouco de­pois, quando estava falando ao telefone para São Paulo, o meu coração disparou. Durante alguns minutos ele bateu num ritmo fortíssimo, me deixando extenuado. Tive que deitar no sofá, até passar. Eu estava tonto, suava muito, quase desmaiei.

Nessa mesma tarde fui ao cardiologista. Ele me fez um exame minucioso, inclusive um eletrocardiograma de esforço, e, no final, disse que eu precisava diminuir de peso e mudar de vida. Achei graça. Então, ele recomendou que eu parasse de trabalhar por algum tempo, mas eu disse que isso, também, era impossível. Afinal, me prescreveu um regime alimentar e mandou que eu caminhasse pelo menos duas vezes por dia.

No dia seguinte, na hora do almoço, quando fui dar a caminhada receitada pelo médico, o mesmo sujeito da véspera me fez parar pedindo dinheiro. Era um homem branco, forte, de cabelos castanhos compridos. Dei a ele algum dinheiro e prossegui.

O médico havia dito, com franqueza, que se eu não tomasse cuidado poderia a qualquer momento ter um enfarte. Tomei dois tranqüilizantes, naquele dia, mas isso não foi suficiente para me deixar totalmente livre da tensão. À noite não levei trabalho para casa. Mas o tempo não passava. Tentei ler um livro, mas a minha atenção estava em outra parte, no escritório. Liguei a televisão mas não consegui agüentar mais de dez minutos. Voltei da minha caminhada, depois do jantar, e fiquei impaciente sentado numa poltrona, lendo os jornais, irritado.}

Na hora do almoço o mesmo sujeito emparelhou comigo, pedindo dinheiro. "Mas todo dia?", perguntei. "Doutor", ele respondeu, "minha mãe está morrendo, precisando de remédio, não conheço ninguém bom no mundo, só o senhor." Dei a ele cem cruzeiros.

Durante alguns dias o sujeito sumiu. Um dia, na hora do almoço, eu estava caminhando quando ele apareceu subitamente ao meu lado. "Doutor, minha mãe morreu”. Sem parar, e apressando o passo, respondi, "sinto muito". Ele alargou as suas passadas, mantendo-se ao meu lado, e disse "morreu". Tentei me desvencilhar dele e comecei a andar rapidamente, quase correndo. Mas ele correu atrás de mim, dizendo "morreu, morreu, morreu", estendendo os dois braços contraídos numa expectativa de esforço, como se fossem colocar o caixão da mãe sobre as palmas de suas mãos. Afinal, parei ofegante e perguntei, "quanto é?". Por cinco mil cruzeiros ele enterrava a mãe. Não sei por que, tirei um talão de cheques do bolso e fiz ali, em pé na rua, um cheque naquela quantia. Minhas mãos tremiam. "Agora chega!”, eu disse.

No dia seguinte eu não saí para dar a minha volta. Almocei no escritório. Foi um dia terrível, em que tudo dava errado: papéis não foram encontrados nos arquivos, uma importante concorrência foi perdida por diferença mínima; um erro no planejamento financeiro exigiu que novos e complexos cálculos orçamentários tivessem que ser elaborados em regime de urgência. À noite, mesmo com os tranqüilizantes, mal consegui dormir.

De manhã fui para o escritório e, de certa forma, as coisas melhoraram um pouco. Ao meio-dia saí para dar a minha volta.

Vi que o sujeito que me pedia dinheiro estava em pé, meio escondido na esquina, me espreitando, esperando eu passar. Dei a volta e caminhei em sentido contrario. Pouco depois ouvi o barulho de saltos de sapatos batendo na calçada como se alguém estivesse correndo atrás de mim. Apressei o passo, sentindo um aperto no coração, era como se eu estivesse sendo perseguido por alguém, um sentimento infantil de medo contra o qual tentei lutar, mas neste instante ele chegou ao meu lado, dizendo, "doutor, doutor". Sem parar, eu perguntei, "agora o quê?". Mantendo-se ao meu lado, ele disse, "doutor, o senhor tem que me ajudar, não tenho ninguém no mundo". Respondi com toda autoridade que pude colocar na voz, "arranje um emprego". Ele disse, "eu não sei fazer nada, o senhor tem que me ajudar". Corríamos pela rua. Eu tinha a impressão de que as pessoas nos observavam com estranheza. "Não tenho que ajudá-lo coisa alguma", respondi. "Tem sim, senão o senhor não sabe o que pode acontecer", e ele me segurou pelo braço e me olhou, e pela primeira vez vi bem como era o seu rosto, cínico e vingativo. Meu coração batia, de nervoso e cansaço. "É a última vez", eu disse, parando e dando dinheiro para ele, não sei quanto.

Mas não foi a última vez. Todos os dias ele surgia, repentina­mente, súplice e ameaçador, caminhando ao meu lado, arruinando a minha saúde, dizendo é a última vez doutor, mas nunca era. Minha pressão subiu ainda mais, meu coração explodia só de pensar nele. Eu não queria mais ver aquele sujeito, que culpa eu tinha de ele ser pobre?

Resolvi parar de trabalhar uns tempos. Falei com os meus colegas de diretoria, que concordaram com a minha ausência por dois meses.

A primeira semana foi difícil. Não é simples parar de repente de trabalhar. Eu me senti perdido, sem saber o que fazer. Mas aos poucos fui me acostumando. Meu apetite aumentou. Passei a dormir melhor e a fumar menos. Via televisão, lia, dormia depois do almoço e andava o dobro do que andava antes, sentindo-me ótimo. Eu estava me tornando um homem tranqüilo e pensando seriamente em mudar de vida, parar de trabalhar tanto.

Um dia saí para o meu passeio habitual quando ele, o pedinte, surgiu inesperadamente. Inferno, como foi que ele descobriu o meu endereço? "Doutor, não me abandone!" Sua voz era de mágoa e ressentimento. "Só tenho o senhor no mundo, não faça isso de novo comigo, estou precisando de um dinheiro, esta é a última vez, eu juro!" — e ele encostou o seu corpo bem junto ao meu, enquanto caminhávamos, e eu podia sentir o seu hálito azedo e podre de faminto. Ele era mais alto do que eu, forte e ameaçador.

Fui na direção da minha casa, ele me acompanhando, o rosto fixo virado para o meu, me vigiando curioso, desconfiado, implacável, até que chegamos na minha casa. Eu disse, "espere aqui".

Fechei a porta, fui ao meu quarto. Voltei, abri a porta e ele ao me ver disse "não faça isso, doutor, só tenho o senhor no mundo". Não acabou de falar ou se falou eu não ouvi, com o barulho do tiro. Ele caiu no chão, então vi que era um menino franzino, de espinhas no rosto e de uma palidez tão grande que nem mesmo o sangue, que foi cobrindo a sua face, conseguia esconder.


Texto publicado no livro "Contos Reunidos", Companhia das Letras — São Paulo, 1994, e extraído de "Contos para um Natal brasileiro", Relume-Dumará/IBASE - Rio de Janeiro, 1996, pág. 37.

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Rubem Fonseca na página "Biografias".

O Vendedor de Seguros



Rubem Fonseca

Rubem Fonseca


Renata, de vestido novo, ficou de lado na frente do espelho, virou o pescoço para ver o traseiro, era um espelho grande que dava para ela ver o corpo por inteiro. Quando coloquei meu paletó, nem sei como me notou, quando olhava para o espelho ela não via mais nada, perguntou você vai sair a esta hora para trabalhar?

Meu negócio é vender seguros, você sabe disso, não tenho horário, respondi.

Eu preferia que tivesse, são cinco horas da tarde, não sei a que horas vai voltar, já vi que não vamos sair hoje à noite, de que adianta eu comprar roupas novas se não saio com elas?

Desculpe, mas tenho que ganhar dinheiro.

Você não tem ganho muito ultimamente.

A concorrência é muito grande. E isso não era uma desculpa.

Pelo menos vou ver o meu desfile, ela disse, ligando a televisão. Havia uma TV a cabo que passava um desfile de moda todos os dias.

Quando eu estava na porta Renata disse, as mulheres elegantes agora andam com seios de fora, o que você acha?

Ainda não vi isso.

Eu disse mulheres elegantes. Quantas mulheres elegantes você conhece?

Só você.

Se as coisas continuarem assim, não vai ser por muito tempo.

Peguei o carro e parei na porta do meu futuro cliente, um prédio de cinco andares. Não parei exatamente na porta, parei um pouco antes. Ele sempre chegava de táxi carregando uma pasta, era um sujeito muito gordo, devia ser das pizzas que comia. Saiu com dificuldade do carro, pensei que desta vez ele estava sozinho, mas o outro cara, um barbudo, saiu logo em seguida. Eu queria visitá-lo quando ele estivesse sozinho, o outro sujeito não estava no seguro e eu não ia desperdiçar o meu latim. Eles entraram no edifício e eu acendi um cigarro. Meu celular tocou. Atendi.

É você?

Quem podia ser?, eu disse.

Diz a senha.

Cara, você anda vendo filmes demais.

É a maneira que eu trabalho. Você já devia estar acostumado.

Foz do Iguaçu.

Tenho um seguro para você.

Vai ter que esperar. Estou no meio de uma venda.

Que apólice é essa? Você trabalha para outro corretor?

Isso não interessa.

Quando acaba?

Não sei. Você também devia estar acostumado com a minha maneira de trabalhar.

Acho que você anda meio promíscuo.

Preciso ganhar a vida. Você não arranja negócios suficientes.

Que ruído é esse?

Não ouvi nenhum ruído.

Eu ouvi. Você sabe que celular é uma merda. Linha cruzada, os narigudos entram facilmente.

Fodam-se os narigudos, não estamos dizendo nomes.

Troca de celular.

Estou com ele há menos de dois meses.

É muito tempo. Eu troco todos os meses.

Você é um corretor.

O vendedor também tem que fazer isso. Ainda mais um como você, que mija fora do penico.

Acabou?

Te ligo daqui a dois dias.

Esperei meia hora e chegou o entregador de pizza. Falou no interfone que ficava na portaria, a porta foi aberta, ele entrou. Uma mola fechava a porta. O prédio não tinha porteiro. Acendi outro cigarro. Esperei uma hora, fumei 8 cigarros esperando o barbudo sair. Um táxi parou na porta do prédio e pouco depois o gordo e o barbudo saíram juntos e entraram num táxi. Eu não ia perder tempo seguindo os dois, não me interessava o que eles faziam. Voltei para casa.

Antes de entrar, desliguei o celular. Renata estava vendo televisão.

Voltou rápido. Vamos pedir uma comida no chinês?

Está bem.

Você não está muito entusiasmado. Você não gosta de comida chinesa. Confessa.

Confesso que não gosto de comida chinesa.

Você só gosta de bacalhau.

Está tirando sarro comigo?

Mais ou menos. Como foi o desfile de moda?

Algumas modelos desfilaram com a bunda de fora. O que você acha?

Não conheço mulheres elegantes.

Está mesmo tirando sarro comigo. No escritório da companhia de seguros você não vai mesmo ver mulheres desfilando com a bunda de fora.

Onde que isso acontece?

Nos lugares chiques. Lugares onde ninguém anda com um revólver debaixo do sovaco, como você.

Não é revólver, é pistola. Me sinto mais tranqüilo com ela. Já imaginou, estou vendendo um seguro numa joalheria e aparece um assaltante?

Se aparecer, o que você faz?

Não sei. Isso ainda não aconteceu.

E você foi vender seguro numa joalheria hoje?

Não.

Mas levou o revólver.

Virou hábito. É pistola.

Para mim é tudo a mesma coisa. Vou ligar para o chinês.

Comemos a comida do chinês. Renata continuou vendo televisão. Eu fui deitar. Antes fumei um cigarro na área de serviço, Renata não me deixava fumar em nenhum outro lugar da casa. Mais tarde ela entrou no quarto, tirou a roupa. Minha vida é tão chata, ela disse, ainda bem que você não nega fogo.

O mérito não era meu. Com a Renata ninguém ia negar fogo.

Durante uma semana eu fiquei vendo o gordo chegar de táxi, e o barbudo estava sempre com ele. Nunca vi os dois conversando. Depois aparecia o entregador de pizza. O gordo ficava cada dia mais gordo, mas o outro cara parecia ficar mais magro, vai ver não gostava de pizza. Um dia eu fiquei a noite inteira nas imediações do apartamento do gordo, os cigarros acabaram e eu fiquei ali, esperando o barbudo sair, mas ele não saiu. Então passei a chegar lá de madrugada. O barbudo saía por volta das sete da manhã, ele usava sempre um blusão largo, bom para esconder uma ferramenta, tinha cara de tira, devia pegar o serviço na delegacia de manhã. O gordo só saía de tarde.

Cheguei em casa e encontrei um bilhete da Renata. Pra mim chega, fui para a casa da minha mãe. O engraçado é que ela sempre tinha me dito que não tinha mãe. Levou as três malas com as roupas dela, também não tinha muito mais coisa para levar, ela só comprava roupa. Esse assunto tinha que ficar para depois, eu tinha outro problema para resolver antes. Peguei o telefone e pedi comida no chinês, não sei bem por quê. Acho que queria ficar na ponta dos cascos, e a melhor maneira para isso é comer mal.

Meu cliente morava no quarto andar. O corredor estava deserto. Tirei o silenciador do bolso e adaptei no cano da pistola. A fechadura da porta podia ser aberta até por um amador. Entrei. O corretor havia me fornecido a planta do apartamento. Não ouvi nenhum barulho, nem fiz nenhum. Ninguém na sala, nem na cozinha. Fui para os quartos, as camas estavam desarrumadas mas nenhum sinal do cliente. A porta do banheiro estava entreaberta.

Abri lentamente a porta do banheiro com o cano do silenciador.

Meu cliente estava deitado na banheira, com água até o pescoço. Me viu quando entrei, e deu um suspiro. Eu devia atirar logo, mas não atirei.

Vai perder o carreto, ele disse, com sotaque de português. Começou a tirar um dos braços de dentro da água.

Devagar, eu disse, apontando a pistola para a cabeça dele.

Ele me mostrou o pulso, sangue escorrendo. A água não estava muito vermelha. Uma gilete brilhava no chão de azulejo. Sentei no banco ao lado da banheira.

Me mostra o outro braço, pedi.

Também tinha o pulso cortado.

Coloquei as luvas e revistei a casa. Encontrei um revólver, um 22, o tambor carregado.

Tirei as luvas e saí. Desci o elevador, pensando. Quando cheguei ao térreo, apertei o botão do quarto andar. Entrei novamente no apartamento do cliente.

Ele viu quando entrei no banheiro.

Voltou?

Quanto tempo demora isso?, perguntei.

Não sei. Mas não dói.

Coloquei as luvas, fui à sala, peguei a arma do cliente e retornei ao banheiro.

Não olha para mim, eu disse.

O 22 não faz muito barulho. Atirei na cabeça dele. Mais uma noite sem dormir.

Deixei o revólver no chão do banheiro, ao lado da gilete.

Liguei do carro para o corretor.

Fiz o serviço.

Faço o depósito hoje, disse o corretor, e desligou.

Gosto de tomar banho de banheira, ler o jornal deitado na água quente. Mas não tomei banho. Entrei só para urinar.

Não almocei. Mais uma noite sem dormir. Seria bom se Renata estivesse comigo.


Texto extraído do livro "A Confraria dos Espadas", Companhia das Letras - São Paulo, 1998, pág.43. "A melhor coisa na obra de Rubem Fonseca é não saber aonde ela vai nos levar. Toda vez que começo um livro dele é como se atendesse um telefonema no meio da noite: "Oi, sou eu. Você não vai acreditar no que está acontecendo." Bem, talvez não no começo, mas logo já estou acreditando em tudo. Sua escrita faz milagre, é misteriosa. Cada livro dele não é só uma viagem que vale a pena, é uma viagem de algum modo necessária." Esta é a opinião de Thomas Pynchon, um dos maiores mitos contemporâneos da literatura americana. Ele, como o autor, alcançou tal condição não à custa de uma sobreposição da imagem, mas exatamente pelo processo oposto, ou seja, o anonimato.

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O Cobrador



Rubem Fonseca

Rubem Fonseca


NA PORTA da rua uma dentadura grande, embaixo escrito Dr. Carvalho, Dentista. Na sala de espera vazia uma placa, Espere o Doutor, ele está atendendo um cliente. Esperei meia hora, o dente doendo, a porta abriu e surgiu uma mulher acompanhada de um sujeito grande, uns quarenta anos, de jaleco branco.

Entrei no gabinete, sentei na cadeira, o dentista botou um guardanapo de papel no meu pescoço. Abri a boca e disse que o meu dente de trás estava doendo muita. Ele olhou com um espelhinho e perguntou como é que eu tinha deixado os meus dentes ficarem naquele estado.

Só rindo. Esses caras são engraçados.

Vou ter que arrancar, ele disse, o senhor já tem poucos dentes e se não fizer um tratamento rápido vai perder todos os outros, inclusive estes aqui — e deu uma pancada estridente nos meus dentes da frente.

Uma injeção de anestesia na gengiva. Mostrou o dente na ponta do boticão: A raiz está podre, vê?, disse com pouco caso.

São quatrocentos cruzeiros.

Só rindo. Não tem não, meu chapa, eu disse.

Não tem não o quê?

Não tem quatrocentos cruzeiros. Fui andando em direção à porta.

Ele bloqueou a porta com o corpo. É melhor pagar, disse. Era um homem grande, mãos grandes e pulso forte de tanto arrancar os dentes dos fodidos. E meu físico franzino encoraja as pessoas. Odeio dentistas, comerciantes, advogadas, industriais, funcionários, médicos, executivos, essa canalha inteira. Todos eles estão me devendo muito. Abri o blusão, tirei o 38, e perguntei com tanta raiva que uma gota de meu cuspe bateu na cara dele, -- que tal enfiar isso no teu cu? Ele ficou branco, recuou. Apontando o revólver para o peito dele comecei a aliviar o meu coração: tirei as gavetas dos armários, joguei tudo no chão, chutei os vidrinhos todos como se fossem balas, eles pipocavam e explodiam na parede. Ar­rebentar os cuspidores e motores foi mais difícil, cheguei a machucar as mãos e os pés. O dentista me olhava, várias vezes deve ter pensado em pular em cima de mim, eu queria muito que ele fizesse isso para dar um tiro naquela barriga grande cheia de merda.

Eu não pago mais nada, cansei de pagar!, gritei para ele, agora eu só cobro!

Dei um tiro no joelho dele. Devia ter matado aquele filho da puta.


* * *

A rua cheia de gente. Digo, dentro da minha cabeça, e às vezes para fora, está todo mundo me devendo! Estão me devendo comida, buceta, cobertor, sapato, casa, automóvel, relógio, dentes, estão me devendo. Um cego pede esmolas sacudindo uma cuia de alumínio com moedas. Dou um pontapé na cuia dele, o barulhinho das moedas me irrita. Rua Marechal Floriano, casa de armas, farmácia, banco, china, retratista, Light, vacina, médico, Ducal, gente aos montes. De manhã não se consegue andar na direção da Central, a multidão vem rolando como uma enorme lagarta ocupando toda a calçada.


* * *

Me irritam esses sujeitos de Mercedes. A buzina do carro também me aporrinha. Ontem de noite eu fui ver o cara que tinha uma Magnum com silenciador para vender na Cruzada, e quando atravessava a rua um sujeito que tinha ido jogar tênis num daqueles clubes bacanas que tem por ali tocou a buzina. Eu vinha distraído pois estava pensando na Magnum, quando a buzina tocou. Vi que o carro vinha devagar e fiquei parado na frente.

Como é?, ele gritou.

Era de noite e não tinha ninguém perto. Ele estava vestido de branco. Saquei o 38 e atirei no pára-brisa, mais para estrunchar o vidro do que para pegar o sujeito. Ele arrancou com o carro, para me pegar ou fugir, ou as duas coisas. Pulei pro lado, o carro passou, os pneus sibilando no asfalto. Parou logo adiante. Fui até lá. O sujeito estava deitado com a cabeça para trás, a cara e o peito cobertos por milhares de pequeninos estilhaços de vidro. Sangrava muito de um ferimento feio no pescoço e a roupa branca dele já estava toda vermelha.

Girou a cabeça que estava encostada no banco, olhos muito arregalados, pretos, e o branco em volta era azulado leitoso, como uma jabuticaba por dentro. E porque o branco dos olhos dele era azulado eu disse — você vai morrer, ô cara, quer que eu te dê o tiro de misericórdia?

Não, não, ele disse com esforço, por favor.

Vi da janela de um edifício um sujeito me observando. Se escondeu quando olhei. Devia ter ligado para a polícia.

Saí andando calmamente, voltei para a Cruzada. Tinha sido muito bom estraçalhar o pára-brisa do Mercedes. Devia ter dado um tiro na capota e um tiro em cada porta, o lanterneiro ia ter que rebolar.


* * *

O cara da Magnum já tinha voltado. Cadê as trinta mi­lhas? Põe aqui nesta mãozinha que nunca viu palmatória, ele disse. A mão dele era branca, lisinha, mas a minha estava cheia de cicatrizes, meu corpo todo tem cicatrizes, até meu pau está cheio de cicatrizes.

Também quero comprar um rádio, eu disse pro muambeiro. Enquanto ele ia buscar o rádio eu examinei melhor a Magnum. Azeitadinha, e também carregada. Com o silenciador parecia um canhão.

O muambeiro voltou carregando um rádio de pilha.

É japonês, ele disse.

Liga para eu ouvir o som.

Ele ligou.

Mais alto, eu pedi.

Ele aumentou o volume.

Puf. Acho que ele morreu logo no primeiro tiro. Dei mais dois tiros só para ouvir puf, puf.


* * *

Tão me devendo colégio, namorada, aparelho de som, respeito, sanduíche de mortadela no botequim da rua Vieira Fazenda, sorvete, bola de futebol.

Fico na frente da televisão para aumentar o meu ódio. Quando minha cólera está diminuindo e eu perco a vontade de cobrar o que me devem eu sento na frente da televisão e em pouco tempo meu ódio volta. Quero muito pegar um camarada que faz anúncio de uísque. Ele está vestidinho, bonitinho, todo sanforizado, abraçado com uma loura reluzente, e joga pedrinhas de gelo num copo e sorri com todos os dentes, os dentes dele são certinhos e são verdadeiros, e eu quero pegar ele com a navalha e cortar os dois lados da bochecha até as orelhas, e aqueles dentes branquinhos vão todos ficar de fora num sorriso de caveira vermelha. Agora está ali, sorrindo, e logo beija a loura na boca. Não perde por esperar.

Meu arsenal está quase completo: tenho a Magnum com silenciador, um Colt Cobra 38, duas navalhas, uma carabina 12, um Taurus 38 capenga, um punhal e um facão. Com o facão vou cortar a cabeça de alguém num golpe só. Vi no cinema, num desses países asiáticos, ainda no tempo dos ingleses­ um ritual que consistia em cortar a cabeça de um animal, creio que um búfalo, num golpe único. Os oficiais ingleses presidiam a cerimônia com um ar de enfado, mas os decapitadores eram verdadeiros artistas. Um golpe seco e a cabeça do animal rolava, o sangue esguichando.


* * *

Na casa de uma mulher que me apanhou na rua. Coroa, diz que estuda no colégio noturno. Já passei por isso, meu colégio foi o mais noturno de todos os colégios noturnos do mundo, tão ruim que já não existe mais, foi demolido. Até a rua onde ele ficava foi demolida. Ela pergunta o que eu faço e digo que sou poeta, o que é rigorosamente verdade. Ela me pede que recite um poema meu. Eis: Os ricos gostam de dormir tarde/ apenas porque sabem que a corja/ tem que dormir cedo para trabalhar de manhã/ Essa é mais uma chance que eles/ têm de ser diferentes:/ parasitar,/ desprezar os que suam para ganhar a comida,/ dormir até tarde,/ tarde/ um dia/ ainda bem,/ demais./

Ela corta perguntando se gosto de cinema. E o poema? Ela não entende. Continuo: Sabia sambar e cair na paixão/ e rolar pelo chão/ apenas por pouco tempo./ Do suor do seu rosto nada fora construído./ Queria morrer com ela,/ mas isso foi outro dia,/ ainda outro dia./ No cinema Íris, na rua da Carioca/ o Fantasma da Ópera/ Um sujeito de preto,/ pasta preta, o rosto escondido,/ na mão um lenço branco imaculado,/ tocava punheta nos espectadores;/ na mesma época, em Copacabana,/ um outro/ que nem apelido tinha,/ bebia o mijo dos mictórios dos cinemas/ e o rosto dele era verde e inesquecível./ A História é feita de gente morta/ e o futuro de gente que vai morrer./ Você pensa que ela vai sofrer?/ Ela é forte; resistirá./ Resistiria também; se­ fosse fraca./ Agora você, não sei./ Você fingiu tanto tempo, deu socos e gritos, embusteou/ Você está cansado,/ você. acabou,/ não sei o que te mantém vivo./

Ela não entendia de poesia. Estava solo comigo e que­ria fingir indiferença, dava bocejos exasperados. A farsanteza das mulheres.

Tenho medo de você, ela acabou confessando.

Essa fodida não me deve nada, pensei, mora com sacrifício num quarto e sala, os olhos dela já estão empapuçados de beber porcarias e ler a vida das grã-finas na revista Vogue.

Quer que te mate?, perguntei enquanto bebíamos uísque ordinário.

Quero que você me foda, ela riu ansiosa, na dúvida. Acabar com ela? Eu nunca havia esganado ninguém com as próprias mãos. Não tem muito estilo, nem drama, esga­nar-se alguém, parece briga de rua. Mesmo assim eu tinha vontade de esganar alguém, mas não uma infeliz daquelas. Para um zé-ninguém, só tiro na nuca?

Tenho pensado nisso, ultimamente. Ela tinha tirado a roupa: peitos murchos e chatos, os bicos passas gigantes que alguém tinha pisado; coxas flácidas com nódulos de celulite, gelatina estragada com pedaços de fruta podre.

Estou toda arrepiada, ela disse.

Deitei sobre ela. Me agarrou pelo pescoço, sua boca e língua na minha boca, uma vagina viscosa, quente e olorosa.

Fodemos.

Ela agora está dormindo.

Sou justo.


* * *

Leio os jornais. A morte do muambeiro da Cruzada nem foi noticiada. O bacana do Mercedes com roupa de tenista morreu no Miguel Couto e os jornais dizem que foi assaltado pelo bandido Boca Larga. Só rindo.

Faço um poema denominado Infância ou Novos Cheiros de Buceta com U: Eis-me de novo/ ouvindo os Beatles/ na Rádio Mundial/ às nove horas da noite/ num quarto/ que poderia ser/ e era/ de um santo mortificado/ Não havia pecado/ e não sei por que me lepravam/ por ser inocente/ ou burro/ De qualquer forma/ o chão estava sempre ali/ para fazer mergulhos./ Quando não se tem dinheiro/ é bom ter músculos/ e ódio./

Leio os jornais para saber o que eles estão comendo, bebendo e fazendo. Quero viver muito para ter tempo de matar todos eles.


* * *

Da rua vejo a festa na Vieira Souto, as mulheres de vestido longo, os homens de roupas negras. Ando lentamente, de um lado para o outro na calçada, não quero despertar suspeitas e o facão por dentro da calça, amarrado na perna, não me deixa andar direito. Pareço um aleijado, me sinto um aleijado. Um casal de meia-idade passa por mim e me olha com pena; eu também sinto pena de mim, manco e sinto dor na perna.

Da calçada vejo os garçons servindo champanha francesa. Essa gente gosta de champanha francesa, vestidos franceses, língua francesa.

Estava ali desde as nove horas, quando passara em frente, todo municiado, entregue à sorte e ao azar, e a festa surgira.

As vagas em frente ao apartamento foram logo ocupa­das e os carros dos visitantes passaram a estacionar nas es­curas ruas laterais. Um deles me interessou muito, um carro vermelho e nele um homem e uma mulher, jovens e elegantes. Caminharam para o edifício sem trocar uma palavra, ele ajeitando a gravata borboleta e ela o vestido e o cabelo. Prepararam-se para uma entrada triunfal mas da calçada vejo que a chegada deles foi, como a dos outros, recebida com desinteresse. As pessoas se enfeitam no cabeleireiro, no costureiro, no massagista e só o espelho lhes dá, nas festas, a atenção que esperam. Vi a mulher no seu vestido azul esvoaçante e murmurei — vou te dar a atenção que você merece, não foi à toa que você vestiu a sua melhor calcinha e foi tantas vezes à costureira e passou tantos cremes na pele e botou perfume tão caro.

Foram os últimos a sair. Não andavam com a mesma firmeza e discutiam irritados, vozes pastosas, enroladas.

Cheguei perto deles na hora em que o homem abria a porta do carro. Eu vinha mancando e ele apenas me deu um olhar de avaliação rápido e viu um aleijado inofensivo de baixo preço.

Encostei o revólver nas costas dele.

Faça o que mando senão mato os dois, eu disse.

Para entrar de perna dura no estreito banquinho de trás não foi fácil. Fiquei meio deitado, o revólver apontado para a cabeça dele. Mandei que seguisse para a Barra da Tijuca. Tirava o facão de dentro da perna quando ele disse, leva o dinheiro e o carro e deixa a gente aqui. Estávamos na frente do Hotel Nacional. Só rindo. Ele já estava sóbrio e queria tomar um último uisquinho enquanto dava queixa à polícia pelo telefone. Ah, certas pessoas pensam que a vida é uma festa. Seguimos pelo Recreio dos Bandeirantes até chegar a uma praia deserta. Saltamos. Deixei acesos os faróis.

Nós não Lhe fizemos nada, ele disse.

Não fizeram? Só rindo. Senti o ódio inundando os meus ouvidos, minhas mãos, minha boca, meu corpo todo, um gosto de vinagre e lágrima.

Ela está grávida, ele disse apontando a mulher, vai ser o nosso primeiro filho.

Olhei a barriga da mulher esguia e decidi ser misericordioso e disse, puf, em cima de onde achava que era o umbigo dela, desencarnei logo o feto. A mulher caiu emborcada. Encostei o revólver na têmpora dela e fiz ali um buraco de mina.

O homem assistiu a tudo sem dizer, uma palavra, a carteira de dinheiro na mão estendida. Peguei a carteira da mão dele e joguei pro ar e quando ela veio caindo dei-lhe um bico; de canhota, jogando a carteira longe.

Amarrei as mãos dele atrás das costas com uma corda que eu levava. Depois amarrei os pés.

Ajoelha, eu disse.

Ele ajoelhou.

Os faróis do carro iluminavam o seu corpo. Ajoelhei-me ao seu lado, tirei a gravata borboleta, dobrei o colarinho, deixando seu pescoço à mostra.

Curva a cabeça, mandei.

Ele curvou. Levantei alto o facão, seguro nas duas mãos; vi as estrelas no céu, a noite imensa, o firmamento infinito e desci o facão, estrela de aço, com toda minha força, bem no meio do pescoço dele.

A cabeça não caiu e ele tentou levantar-se, se debatendo como se fosse uma galinha tonta nas mãos de uma cozinheira incompetente. Dei-lhe outro golpe e mais outro e outro e a cabeça não rolava. Ele tinha desmaiado ou morrido com a porra da cabeça presa no pescoço. Botei o corpo sobre o pára­lama do carro. O pescoço ficou numa boa posição. Concentrei-me como um atleta que vai dar um salto mortal. Dessa vez, enquanto o facão fazia seu curto percurso mutilante zunindo fendendo o ar, eu sabia que ia conseguir o que queria. Brock! a cabeça saiu rolando pela areia. Ergui alto o alfanje e recitei: Salve o Cobrador! Dei um grito alto que não era nenhuma palavra, era um uivo comprido e forte, para que todos os bichos tremessem e saíssem da frente. Onde eu passo o asfalto derrete.


* * *

Uma caixa preta debaixo do braço. Falo com a língua presa que sou o bombeiro que vai fazer o serviço no aparta­mento duscenthos e um. O porteiro acha graça na minha língua presa e me manda subir. Começo do último andar. Sou o bombeiro (língua normal agora) vim fazer o serviço. Pela abertura, dois olhos: ninguém chamou bombeiro não. Desço para o sétimo, a mesma coisa. Só vou ter sorte no primeiro andar.

A empregada me abriu a porta e gritou lá para dentro, é o bombeiro. Surgiu uma moça de camisola, um vidro de esmalte de unhas na mão, bonita, uns vinte e cinco anos.

Deve haver um engano, ela disse, nós não precisamos de bombeiro.

Tirei o Cobra de dentro da caixa. Precisa sim, é bom ficarem quietas senão mato as duas. Tem mais alguém em casa? O marido estava trabalhando e o menino no colégio. Amarrei a empregada, fechei sua boca com esparadrapo. Levei a dona pro quarto.

Tira a roupa.

Não vou tirar a roupa, ela disse, a cabeça erguida. Estão me devendo xarope, meia, cinema, filé mignon e buceta, anda logo. Dei-lhe um murro na cabeça. Ela caiu na cama, uma marca vermelha na cara. Não tiro. Arranquei a camisola, a calcinha. Ela estava sem sutiã. Abri-lhe as pernas. Coloquei os meus joelhos sobre as suas coxas. Ela tinha uma pentelheira basta e negra. Ficou quieta, com olhos fechados. Entrar naquela floresta escura não foi fácil, a buceta era apertada e seca. Curvei-me, abri a vagina e cuspi lá dentro, grossas cusparadas. Mesmo assim não foi fácil, sentia o meu pau esfolando. Deu um gemido quando enfiei o cacete com toda força até o fim. Enquanto enfiava e tirava o pau eu lambia os peitos dela, a orelha, o pescoço, passava o dedo de leve no seu cu, alisava sua bunda. Meu pau começou a ficar lubrifi­cado pelos sucos da sua vagina, agora morna e viscosa.

Como já não tinha medo de mim, ou porque tinha medo de mim, gozou primeiro do que eu. Com o resto da porra que saía do meu pau fiz um círculo em volta do umbigo dela.

Vê se não abre mais a porta pro bombeiro, eu disse, antes de ir embora.


***

Saio do sobrado da rua Visconde de Maranguape. Uma panela em cada molar cheio de cera do Dr. Lustosa/ mastigar com os dentes da frente/ punheta pra foto de revista/ livros roubados./ Vou para a praia.

Duas mulheres estão conversando na areia; uma tem o corpo queimado de sol, um lenço na cabeça; a outra é clara, deve ir pouco à praia; as duas têm o corpo muito bonito; a bunda da clara é a bunda mais bonita entre todas que já vi.

Sento perto, e fico olhando. Elas percebem meu interesse e começam logo a se mexer, dizer coisas com o corpo, fazer movimentos aliciantes com os rabos. Na praia somos todos iguais, nós os fodidos e eles. Até que somos melhores pois não temos aquela barriga grande e a bunda mole dos para­sitas. Eu quero aquela mulher branca! Ela inclusive está interessada em mim, me lança olhares. Elas riem, riem, dentantes. Se despedem e a branca vai andando na direção de Ipanema, a água molhando os seus pés. Me aproximo e vou andando junto, sem saber o que dizer

Sou uma pessoa tímida, tenho levado tanta porrada na vida, e o cabelo dela é fino e tratado, o seu tórax é esbelto, os seios pequenos, as coxas são sólidas e redondas e musculosas e a bunda é feita de dois hemisférios rijos. Corpo de bailarina.
Você estuda balé?

Estudei, ela diz. Sorri para mim. Como é que alguém pode ter boca tão bonita? Tenho vontade de lamber dente por dente da sua boca. Você mora por aqui?, ela pergunta. Moro, minto. Ela me mostra um prédio na praia, todo de mármore.


* * *

De volta à rua Visconde de Maranguape. Faço hora para ir na casa da moça branca. Chama-se Ana. Gosto de Ana, palindrômico. Afio o facão com uma pedra especial, o pescoço daquele janota era muito duro. Os jornais abriram muito espaço para a morte do casal que eu justicei na Barra. A moça era filha de um desses putos que enriquecem em Sergipe ou Piauí, roubando os paus-de-araras, e depois vêm para o Rio, e os filhos de cabeça chata já não têm mais sotaque, pintam o cabelo de louro e dizem que são descendentes de holandeses.

Os colunistas sociais estavam consternados. Os granfas que eu despachei estavam com viagem marcada para Paris. Não há mais segurança nas ruas, dizia a manchete de um jornal. Só rindo. Joguei uma cueca pro alto e tentei cortá-la com o facão, como o Saladino fazia (com um lenço de seda) no cinema.

Não se fazem mais cimitarras como antigamente/ Eu sou uma hecatombe/ Não foi nem Deus nem o Diabo/ Que me fez um vingador/ Fui eu mesmo/ Eu sou o Homem Pênis/ Eu sou o Cobrador./

Vou no quarto onde Dona Clotilde está deitada há três anos. Dona Clotilde é dona do sobrado.

Quer que eu passe o escovão na sala?, pergunto.

Não meu filho, só queria que você me desse a injeção de trinevral antes de sair.

Fervo a seringa, preparo a injeção. A bunda de Dona Clotilde é seca como uma folha velha e amassada de papel de arroz.

Você caiu do céu, meu filho, foi Deus que te mandou, ela diz.

Dona Clotilde não tem nada, podia levantar e ir comprar coisas no supermercado. A doença dela está na cabeça. E depois de três anos deitada, só se levanta para fazer pipi e cocô, ela não deve mesmo ter forças.

Qualquer dia dou-lhe um tiro na nuca.


* * *

Quando satisfaço meu ódio sou possuído por uma sensação de vitória, de euforia que me dá vontade de dançar — dou pequenos uivos, grunhidos, sons inarticulados, mais próximos da música do que da poesia, e meus pés deslizam pelo chão, meu corpo se move num ritmo feito de gingas e saltos, como um selvagem, ou um macaco.

Quem quiser mandar em mim pode querer, mas vai morrer. Estou querendo muito matar um figurão desses que mostram na televisão a sua cara paternal de velhaco bem-sucedido, uma pessoa de sangue engrossado por caviares e champãs. Come caviar/ teu dia vai chegar./ Estão me devendo uma garota de vinte anos, cheia de dentes e perfume. A moça do prédio de mármore? Entro e ela está me esperando, sentada na sala, quieta, imóvel, o cabelo muito preto, o rosto branco, parece uma fotografia.

Vamos sair, eu digo para ela. Ela me pergunta se estou de carro. Digo que não tenho carro. Ela tem. Descemos pelo elevador de serviço e saímos na garagem, entramos num Puma conversível.

Depois de algum tempo pergunto se posso dirigir e trocamos de lugar. Petrópolis está bem?, pergunto. Subimos a serra sem dizer uma palavra, ela me olhando. Quando chega­mos a Petrópolis ela pede que eu pare num restaurante. Digo que não tenho dinheiro nem fome, mas ela tem as duas coisas, come vorazmente como se a qualquer momento fossem levar o prato embora. Na mesa ao lado um grupo de jovens bebendo e falando alto, jovens executivos subindo na sexta-­feira e bebendo antes de encontrar a madame toda enfeitada para jogar biriba ou falar da vida alheia enquanto traçam queijos e vinhos. Odeio executivos. Ela acaba de comer. E agora? Agora vamos voltar, eu digo, e descemos a serra, eu dirigindo como um raio, ela me olhando. Minha vida não tem sentido, já pensei em me matar, ela diz. Paro na rua Visconde de Maranguape. É aqui que você mora? Saio sem dizer nada. Ela sai atrás: vou te ver de novo? Entro e enquanto vou subindo as escadas ouço o barulho do carro partindo.


* * *

Top Executive Club. Você merece o melhor relax, feito de carinho e compreensão. Nossas massagistas são completas. Elegância e discrição.

Fica quieto senão chumbo a sua barriga executiva.

Ele tem o ar petulante e ao mesmo tempo ordinário do ambicioso ascendente egresso do interior, deslumbrado de coluna social, comprista, eleitor da Arena, católico, cursilhista, patriota, mordomista e bocalivrista, os filhos estudando na PUC, a mulher transando decoração de interiores e sócia de butique.

Como é executivo, a massagista te tocou punheta ou chupou teu pau?

Você é homem, sabe como é, entende essas coisas, ele disse. Papo de executivo com chofer de táxi ou ascensorista. De Botucatu para a Diretoria, acha que já enfrentou todas as situações de crise.

Não sou homem porra nenhuma, digo suavemente, sou o Cobrador.

Sou o Cobrador!, grito.

Ele começa a ficar da cor da roupa. Pensa que sou maluco e maluco ele ainda não enfrentou no seu maldito escritório refrigerado.

Vamos para sua casa, eu digo.

Eu não moro aqui no Rio, moro em São Paulo, ele diz. Perdeu a coragem, mas não a esperteza. E o carro?, pergunto. Carro, que carro? Este carro, com a chapa do Rio? Tenho mulher e três filhos, ele desconversa. Que é isso? Uma desculpa, senha, habeas-corpus, salvo-conduto? Mando parar o carro. Puf, puf, puf, um tiro para cada filho, no peito. O da mulher na cabeça, puf.


* * *

Para esquecer a moça que mora no edifício de mármore vou jogar futebol no aterro. Três horas seguidas, minhas per­nas todas escalavradas das porradas que levei, o dedão do pé direito inchado, talvez quebrado. Sento suado ao lado do campo, junto de um crioulo lendo O Dia. A manchete me interessa, peço o jornal emprestado, o cara diz se tu quer ler o jornal por que não compra? Não me chateio, o crioulo tem poucos dentes, dois ou três, tortos e escuros. Digo, tá, não vamos brigar por isso. Compro dois cachorros-quentes e duas cocas e dou metade pra ele e ele me dá o jornal. A manchete diz: Polícia à procura do louco da Magnum. Devolvo o jornal pro crioulo. Ele não aceita, ri para mim enquanto mastiga com os dentes da frente, ou melhor com as gengivas da frente que de tanto uso estão afiadas como navalhas. Notícia do jornal: Um grupo de grã-finos da zona sul em grandes preparativos para o tradicional Baile de Natal — Primeiro Grito de Carnaval. O baile começa no dia vinte e quatro e termina no dia primeiro do Ano Novo; vêm fazendeiros da Argentina, herdeiros da Alemanha, artistas americanos, executivos japoneses, o parasitismo internacional. O Natal virou mesmo uma festa. Bebida, folia, orgia, vadiagem.

O Primeiro Grito de Carnaval. Só rindo. Esses caras são engraçados.

Um maluco pulou da ponte Rio-Niterói e boiou doze horas até que uma lancha do Salvamar o encontrou. Não pegou nem resfriado.

Um incêndio num asilo matou quarenta velhos, as famílias celebraram.


* * *

Acabo de dar a injeção de trinevral em Dona Clotilde quando tocam a campainha. Nunca tocam a campainha do sobrado. Eu faço as compras, arrumo a casa. Dona Clotilde não tem parentes. Olho da sacada. É Ana Palindrômica.

Conversamos na rua. Você está fugindo de mim?, ela pergunta. Mais ou menos, digo. Vou com ela pro sobrado. Dona Clotilde, estou com uma moça aqui, posso levar pro quarto? Meu filho, a casa é sua, faça o que quiser, só quero ver a moça.

Ficamos em pé ao lado da cama. Dona Clotilde olha para Ana um tempo enorme. Seus olhos se enchem de lágrimas. Eu rezava todas as noites, ela soluça, todas as noites para você encontrar uma moça como essa. Ela ergue os braços magros cobertos de finas pelancas para o alto, junta as mãos e diz, oh meu Deus, como vos agradeço!

Estamos no meu quarto, em pé, sobrancelha com sobrancelha, como no poema, e tiro a roupa dela e ela a minha e o corpo dela é tão lindo que sinto um aperto na garganta, lágrimas no meu rosto, olhos ardendo, minhas mãos tremem e agora estamos deitados, um no outro, entrançados, gemendo, e mais, e mais, sem parar, ela grita; a boca aberta, os dentes brancos como de um elefante jovem, ai, ai, adoro a tua obsessão!, ela grita, água e sal e porra jorram de nossos corpos, sem parar.

Agora, muito tempo depois, deitados olhando um para o outro hipnotizados até que anoitece e nossos rostos brilham no escuro e o perfume do corpo dela traspassa as paredes do quarto.

Ana acordou primeiro do que eu e a luz está acesa. Você só tem livros de poesia? E estas armas todas, pra quê? Ela pega a Magnum no armário, carne branca e aço negro, aponta pra mim. Sento na cama.

Quer atirar? pode atirar, a velha não vai ouvir. Mais para cima um pouco. Com a ponta do dedo suspendo o cano até a altura da minha testa. Aqui não dói.

Você já matou alguém? Ana aponta a arma pra minha testa.

Já.

Foi bom?

Foi.

Como?

Um alívio.

Como nós dois na cama?

Não, não, outra coisa. O outro lado disso.

Eu não tenho medo de você, Ana diz.

Nem eu de você. Eu te amo.

Conversamos até amanhecer. Sinto uma espécie de febre. Faço café pra Dona Clotilde e levo pra ela na cama. Vou sair com Ana, digo. Deus ouviu minhas preces, diz a velha entre goles.


* * *

Hoje é dia vinte e quatro de dezembro, dia do Baile de Natal ou Primeiro Grito de Carnaval. Ana Palindrômica saiu de casa e está morando comigo. Meu ódio agora é diferente. Tenho uma missão. Sempre tive uma missão e não sabia. Agora sei. Ana me ajudou a ver. Sei que se todo fodido fizesse como eu o mundo seria melhor e mais justo. Ana me ensinou a usar explosivos e acho que já estou preparado para essa mudança de escala. Matar um por um é coisa mística e disso eu me libertei. No Baile de Natal mataremos convencionalmente os que pudermos. Será o meu último gesto romântico inconseqüente. Escolhemos para iniciar a nova fase os compristas nojentos de um supermercado da zona sul. Serão mor­tos por uma bomba de alto poder explosivo. Adeus, meu facão, adeus meu punhal, meu rifle, meu Colt Cobra, adeus minha Magnum, hoje será o último dia em que vocês serão usados. Beijo o meu facão. Explodirei as pessoas, adquirirei prestigio; não serei apenas o louco da Magnum. Também não sairei mais pelo parque do Flamengo olhando as árvores; os troncos, a raiz, as folhas, a sombra, escolhendo a árvore que eu queria ter, que eu sempre quis ter, num pedaço de chão de terra batida. Eu as vi crescer no parque e me alegrava quando chovia e a terra se empapava de água, as folhas lavadas de chuva, o vento balançando os galhos, enquanto os carros dos canalhas passavam velozmente sem que eles olhas­sem para os lados. Já não perco meu tempo com sonhos.

O mundo inteiro saberá quem é você, quem somos nós, diz Ana.

Notícia: O Governador vai se fantasiar de Papai Noel. Notícia: menos festejos e mais meditação, vamos purificar o coração. Notícia: Não faltará cerveja. Não faltarão perus. Notícia: Os festejos natalinos causarão este ano mais vítimas de trânsito e de agressões do que nos anos anteriores. Policia e hospitais preparam-se para as comemorações de Natal. O Cardeal na televisão: a festa de Natal está deturpada, o seu sentido não é este, essa história de Pagai Noel é uma invenção infeliz. O Cardeal afirma que Papai Noel é um palhaço fictício.

Véspera de Natal é um bom dia para essa gente pagar o que deve, diz Ana. O Papai Noel do baile eu mesmo quero matar com o facão, digo.

Leio para Ana o que escrevi, nosso manifesto de Natal, para os jornais. Nada de sair matando a esmo, sem objetivo definido. Eu não sabia o que queria, não buscava um resultado prático, meu ódio estava sendo desperdiçado. Eu estava certo nos meus impulsos, meu erro era não saber quem era o inimigo e por que era inimigo. Agora eu sei, Ana me ensinou. E o meu exemplo deve ser seguido por outros, muitos outros, só assim mudaremos o mundo. É a síntese do nosso manifesto.

Ponho as armas numa mala. Ana atira tão bem quanto eu, só não sabe manejar o facão, mas essa arma agora é obsoleta. Damos até logo à Dona Clotilde. Botamos a mala no carro. Vamos ao Baile de Natal. Não faltará cerveja, nem perus. Nem sangue. Fecha-se um ciclo da minha vida e abre-se outro.


Texto extraído do livro "O Cobrador", Editora Nova Fronteira - Rio de Janeiro, 1979, pág. 165.

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